terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Escola Pública - Território de conflitos - parte 1

Conflitos inerentes à usurpação da autonomia

Ano novo, vida nova. Só a escola continua a mesma. O tempo na escola é contado em "eras geológicas", e ainda estamos no paleozóico (época dos grandes dinossauros). A escola é um grande dinossauro que não evoluiu, mas talvez tenha retrogredido, e caminha agonizante rumo à extinção, salvo ocorra alguma grande mutação, talvez política, talvez social, que lhe dê novas habilidades e competências que lhe permitam sobreviver nesse novo ecossistema econômico e social da contemporaneidade.

Na rede pública paulista retomamos os trabalhos "letivos" nessa última quarta-feira, 08/02. Como em todos os últimos anos de que me lembro, os dois primeiros dias letivos são destinados a um pseudo-planejamento. Na teoria, e no calendário oficial, foram dois dias para planejar o ano letivo, discutir os projetos que serão desenvolvidos na escola e traçar as metas de ensino, as estratégias didático-pedagógicas e um plano  de trabalho coletivo e integrado que atenda aos pressupostos do projeto político-pedagógico da escola. Em teoria também seria a época dos professores estabelecerem os seus planejamentos anuais, os projetos pedagógicos de suas disciplinas, os projetos interdisciplinares de cada área e os projetos transdisciplinares.

Em tese deveríamos ter abordado diversos temas relevantes e de interesse para a melhoria da qualidade do ensino na escola. Mas apenas em tese. Da mesma forma como, em tese, a escola teria autonomia para traçar suas próprias metas e definir as estratégias pelas quais pretende atingi-las. O que mais impressiona na escola pública é a forma como as teorias, teses e "discursos" ocupam o espaço real da ação e desvirtuam a escola, tornando-a uma espécie de "academia às avessas", onde produz-se papel inútil e "encomendado" em detrimento de um trabalho efetivo e focado verdadeiramente na escola e suas reais necessidades.

Na pratica o discurso da gestão (entenda-se direção/coordenação lendo as determinações recebidas da Diretoria de Ensino) é sempre o mesmo discurso do "nos mandaram dizer que vocês tem que fazer...", e ponto final. Para um ET que apareça desavisado a uma dessas reuniões de planejamento  de início de ano parecerá que a escola é um organismo estúpido, incapaz de auto-gestão, incompetente para ter autonomia quanto as suas próprias práticas e objetivos. Mas, pensando bem, não é preciso ser um ET para ter essa percepção, e ainda existe a possibilidade de que a escola seja mesmo tão estúpida e incapaz quanto lhe imaginam aqueles que a abandoram para ocupar cargos "mais elevados", onde a vida se resume a produzir e reproduzir papéis inúteis.

Os conflitos que caracterizam a escola pública, e sobre os quais pretendo dar ênfase ao longo dos relatos desse ano letivo que se inicia, já começam no antagonismo entre o que diz a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e a forma como chegam aos gestores e docentes as determinações impostas pelas Diretorias de Ensino, vindas, ao fim e ao cabo, da própria Secretaria da Educação. É incerto o papel dos técnicos, dirigentes, supervisores e PCOPs (Professores Coordenadores das Oficinas Pedagógicas - que teoricamente seriam encarregados do suporte pedagógico aos Professores Coordenados das unidades escolares, os PCs), visto que nenhum deles assume nenhuma responsabilidade pelas "instruções que repassam". O certo é que nessa Torre de Babel, ou de papel, ninguém parece saber porque está fazendo aquilo que faz.

A LDB, no item III do seu artigo 3º, estabele o "pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas"; no artigo 12º, item I, diz que cabe à escola "elaborar e executar sua proposta pedagógica" e, ainda; no artigo 13º, item I, afirma caber ao professor "participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino" (some-se a isso ainda o artigo 14º, item I, e o artigo 15º). Assim, a LDB deixa claro a autonomia e a responsabilidade da escola (gestão e corpo docente, com a participação da comunidade de pais e alunos) quanto ao seu papel na auto-gestão pedagógica e administrativa de cada unidade escolar.

Nada dessa autonomia se vê na escola. O Governo do Estado de São Paulo imagina que "inventou um currículo que antes não existia" (céus, durante décadas as escolas funcionaram sem um currículo???!!!) e que, com isso, "seus problemas se acabaram-se". As DEs, por meio de seu pessoal técnico-pedagógico, imaginam que "aplicar o currículo" seja utilizar os Cadernos do Aluno (e do Professor) fornecidos pela SEE, como se elas fossem "apostilas de cursinho". Os coordenadores pedagógicos das escolas entendem que sua função seja a de servir apenas como "garotos de leva e traz" das DEs e, por último, os professores se vêem como sabotadores profissionais cuja função é provar que tudo isso vai dar errado e, portanto, colaborar, tanto quanto possível, para que tudo dê errado mesmo.

Como pode uma máquina podre como essa ter sobrevivido à extinção? Resposta simples: todos aprenderam a achar que "isso tudo é normal". A escola perdeu a capacidade de indignar-se diante da incompetência de seus gestores, nos diversos níveis de gestão, e aceitou que é mera executora de políticas destinadas ao fracasso. A sociedade foi bombardeada com mentiras que dizem que os alunos não aprendem porque seus professores são ruins e que "isso é normal"! A imprensa e os pretensos formadores de opinião entendem que alunos saindo da escola com desempenho entre 2 e 3 em uma escala que vai até 10 "é algo normal"!

Quando a última LDB foi redigida, em 1996, ninguém mais parecia crer que aquilo não se destinaria a ser "apenas papel". Talvez por isso governos estaduais a ignorem e prefiram procurar soluções mágicas para problemas reais. O que ninguém parece ter percebido (sim, eu acredito na estupidez humana!) é que soluções mágicas só se aplicam em universos hipotéticos (como o universo onde vivem alguns dos nossos mais ilustres catedráticos da educação, que há décadas não sabem a diferença entre uma escola e uma padaria - porque só frequentam a padaria). Essa falta de percepção da necessidade de autonomia (burrice mesmo) é o primeiro grande fator gerador de conflitos dentro da escola, porque é daí que nasce e se alimenta a sensação de que a responsabilidade é sempre do outro. Estamos assistindo isso há duas décadas e os resultados que nos envergonham hoje eram previsíveis há 20 anos atrás.

Perdemos, mais uma vez, os dois dias iniciais de planejamento em discussões fúteis e no preenchimento de "papéis para a DE". Vivenciamos os primeiros e principais conflitos do ano e a maioria de nós já não quer ser capaz de tirar nenhuma conclusão disso tudo. A máquina moribunda agoniza mas não morre, e possui uma inércia infinita. Os discursos tendem ao vazio ou à disputas inócuas. Professores agem como crianças pirracentas quebrando vidraças alheias. Gestores agem como garotos de recado acéfalos e amorais. Burocratas do sistema imaginam-se ainda como generais da ditadura, enquanto vivem suas vidas estúpidas de carrascos de segunda categoria. De quem é a responsabilidade?



No próximo capítulo, "Escola Pública - Território de conflitos - parte 2: Alunos, onde estarão?", farei um contraponto entre os planos fantásticos de governos desgovernados e a realidade da sala de aula (lugar desconhecido pelos formuladores de políticas públicas e educacionais).

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