quarta-feira, 4 de março de 2009

A vida como ela é

Se eu tivesse contado todas as histórias que tenho para contar nesses 26 anos como professor eu precisaria de uma biblioteca muito grande para acomodar tantos "causos". As que nunca contei acho que nunca contarei porque a cada dia são tantas as novas histórias que eu precisaria de muitas vidas simultâneas para dar conta de recordar o passado. Então vamos ao presente... E que presente!!!

Ontem (agora à pouco, já que mal começou a madrugada da quarta-feira), subi as escadas para a primeira aula em uma de minhas classes do noturno. Estranhei o aluno novo que encontrei no corredor ainda antes de subir as escadas: um cachorrinho poodle todo faceiro e animado no meio da multidão de alunos que sempre entram em cima da hora.

Subimos juntos, eu, a multidão de alunos e o cãozinho poodle. Aluno novo? Perguntava um aluno. É o irmão de fulano, dizia outro; que nada, é cara de sicrano, emendava um terceiro. E assim, entre piadas e congestionamentos nos corredores e escadas, subimos todos.

Quando consegui chegar à porta da minha sala, quem vejo lá dentro? Exato, o próprio cãozinho. Ele entrou, foi até a primeira carteira da segunda fileira ao lado da parede com janelas (e grades nas janelas - sim, escola pública está mais para cadeia do que para escola - dizem que é item de segurança, mas para mim é apenas mau gosto), sentou-se em baixo da carteira e ficou lá, quietinho.

Entra um atrasado e... "Olha, aluno novo!"; entra mais um e... "Crédo, o que é isso?". E assim foi pelos dez minutos iniciais da primeira aula, onde de aula mesmo não há nada, apenas um desfile de gente entrando e se acomodando.

Eu já estava ensaiando um "boa noite" quando chegou mais uma atrasada e foi procurar seu lugar. De repente parece que o mundo parou, o tempo parou, o ruído parou, tudo parou e só havia dois personagens para encenar o resto da história: a menina e seu cãozinho poodle perdido.

Sim, o cãozinho era da menina atrasada. Ou talvez a menina atrasada fosse do cãozinho. Acho que não importava muito agora. Os olhinhos de ambos avermelharam, brilharam e gotejaram felicidade.

O cãozinho havia seguido a menina até a escola na segunda-feira, mas o vice-diretor, encarregado de colocar alguma ordem na bagunça noturna, não deixou o pobrezinho entrar porque, segundo alegações do próprio, ele estava sem uniforme. A menina entrou e o cãozinho ficou de fora.

Mas o cãozinho sumiu, não voltou mais para casa, perdeu-se por ai. Procuraram-no, em vão. Já dado por perdido, na terça à noite eis que ele reaparece na escola, entra no meio do turbilhão de alunos aplicando um legítimo "171" no vice-diretor (que dessa vez não o pegou, assim como as vezes não pega outros alunos que esquecem dos uniformes), segue a multidão por corredores onde nunca esteve, sobe as escadas que nunca subiu, escolhe uma entre as nove salas que nunca visitou, entra e se senta tranquilo à espera da sua dona, que de fato chegou, entrou e o encontrou.

Final feliz, é claro. Abraços, beijos, lambidas e rabinhos abanantes. O mundo voltara a existir então e a sala parecia não compreender muito bem o que tinha presenciado. A menina pediu permissão para ir até a diretoria com seu cãozinho solicitar permissão para levá-lo para casa. Concedi, é claro. E lá na diretoria lhe foi concedida a outra permissão. Mais tarde ela retornou, lá pelo meio da segunda aula.

Alguns dizem que só mesmo um milagre para a Educação Pública se tornar boa no Brasil. Bobagem. Milagres acontecem todos os dias nas muitas salas de aula pelo país afora. O que talvez precisemos é cultivar melhor esse gosto pelas coisas gostosas que perdemos em meio à tantas outras coisas sem nenhuma graça. Dos noventa minutos de aula de que dispúnhamos acho que efetivamente tivemos uns sessenta, talvez nem isso. Mas por incrível que pareça, com tantos doces imprevistos, esses sessenta minutos duraram tanto quanto os minutos de reencontro entre o cãozinho e sua dona e hoje tivemos uma aula fenomenal e extremamente produtiva, participativa, rica em conteúdos e discussões... Milagres, estão por toda parte...

2 comentários:

  1. Prof. JC,
    Só quem foi ou é professor sabe desta delícia que é lecionar e do que aprendemos dentro do magistério. Quem não concorda comigo deveria mudar de "ramo". A história do poodle me atingiu em cheio porque sei como é angustiante perder um cãozinho e a alegria que é reencontrá-lo e imagine...esperando na sla de aula.
    Parabéns por tudo que nos tem ensinado e por este amor, infelizmente, raro ao magistério e principalmente por esta nave, onde espero dar muitos passeios.
    Um grande abraço e todo o meu carinho,
    Nédier

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  2. É como eu digo, estranhezas acontecem o tempo todo.

    Já encontrou o vice diretor depois do episódio?

    Abraços,

    John

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